Thursday, October 08, 2009

"Fresca"

"O dia em que nasci, eu estava tomando um café sem açúcar enquanto fingia que lia o jornal, com os olhos focados na sujeira do azulejo da cozinha. Meus pais já tinham morrido havia tanto tempo que eu já nem chorava de saudade. Eu tinha talvez uns setenta anos de morte quando a vida me pegou desprevenida – esperava morrer até os setenta e um, embora meu sobrinho sempre dissesse que eu morreria bem até os cento e dez. Esse morreu jovem de dor de dente de forma que viesse logo cuidar de mim.

Mas não cheguei aos cento e dez nem aos setenta e um; nasci antes, sem terminar o jornal, sem limpar a cozinha. A vida me chegou tão de súbito que não tive tempo de recuperar na memória a imagem dos meus pais. Não tive tempo nem de olhar o retratinho na escrivaninha: nasci mesmo olhando o azulejo sujo.

Meus pais então viviam e não tinham cabelos brancos; quis rir, mas vi sangue e chorei. Durante quatro anos matutei sobre as grandes questões da morte, mal falava, não lia ainda, tinha problemas com a memória, chorava muito por isso até acostumar à vida. E aos quatro tomei meu primeiro gole de café – mas como tinha açúcar não associei a nada. Aos quatro também talvez toda memória tivesse já sido esquecida, meu sobrinho ainda morto, meu café esfriando, meus setenta ou setenta e tantos anos.

Agora me lembro de tudo, a notícia de jornal que eu não li, o gole de café amargo que tomava quando nasci, mas em três ou quatro anos devo esquecer. Tenho três ou quatro anos para matutar sobre as grandes questões da vida. A última vez que morri, era noite, beijei o retratinho dos meus pais e guardei no bolso, queria rir, mas vi sangue e chorei."